quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Papa quer Igreja compassiva, que não seja surda à realidade

Sínodo sobre a família: entreaberta a porta para bispos decidirem caso a caso sobre as situações de ruptura matrimonial 


Foto Ricardo Perna/Família Cristã (reproduzida daqui)

O Papa Francisco diz que é tempo de a Igreja ser compassiva e ter misericórdia. E, perante as necessidades e a realidade vivida pelas pessoas, os católicos, e de modo especial os bispos, não devem ser surdos: “Uma fé que não sabe radicar-se na vida das pessoas permanece árida e, em vez de oásis, cria outros desertos”.
Na homilia da missa conclusiva do Sínodo dos Bispos, que desde dia 4 debateu no Vaticano os desafios colocados pela realidade da família ao catolicismo, o Papa não se referiu directamente aos temas tratados na assembleia, mas não deixou de apontar critérios para a actuação dos responsáveis da Igreja.
“Podemos caminhar através dos desertos da humanidade não vendo aquilo que realmente existe, mas o que nós gostaríamos de ver”, afirmou Francisco. Para acrescentar: “Somos capazes de construir visões do mundo, mas não aceitamos aquilo que o Senhor nos coloca diante dos olhos.”
O documento final do Sínodo, com 94 pontos que, na véspera, foram aprovados todos por maioria qualificada, reflecte a tensão entre o desejo do Papa em debater essa realidade e aquilo que, para já, a hierarquia católica foi (ou não) capaz de fazer: tímidas aberturas na questão dos divorciados que voltaram a casar, doutrina inamovível sobre a contracepção ou a homossexualidade, afirmações contundentes sobre as dificuldades económicas e sociais vividas por muitas famílias...

Consenso ainda difícil

O acesso dos divorciados recasados à comunhão foi um dos temas que dominou os últimos dias de trabalho. E foi aquele onde o consenso apareceu mais difícil: os três pontos sobre o assunto foram aprovados também por maioria qualificada de dois terços (eram necessários pelo menos 177 votos), mas à tangente.

Nos parágrafos 84-86 do documento final – que tem apenas um carácter de contributo de reflexão para ser entregue ao Papa – admite-se que os divorciados recasados civilmente “devem ser mais integrados nas comunidades cristãs”. Propõe-se, depois, que tenha um lugar um processo de discernimento sobre as formas de exclusão de que essas pessoas têm sido vítimas. E acrescenta-se que a aproximação da comunidade a estas pessoas não é um “enfraquecimento da fé”, antes uma expressão da caridade cristã.
O processo de discernimento de cada crente nessa situação deve afrontar questões como as tentativas de reconciliação, o comportamento tido diante dos filhos ou a situação do ex-parceiro. E deve ser acompanhado por um padre, de acordo com o ensino católico e a orientação do bispo.
Este processo deve levar a reflectir sobre o obstáculo a uma maior participação na vida da Igreja e sobre “os passos que a podem favorecer e fazer crescer”. Deste modo, fica aberto um caminho que – como dizia o cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena (Áustria), sexta-feira, na véspera da votação – não é directo, mas “oblíquo” – ou seja, dependerá da leitura de quem o fizer.
Comentando a proposta que acabara de ser aprovada, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, disse ao DN sábado à noite que “a porta ficou muito mais aberta e de certa maneira esvaziou” o debate sobre a questão, tendo em conta também que, num recente documento, o Papa admitiu a “falta de fé” ara considerar nulo um casamento.
Mesmo assim, o patriarca não vai tão longe quanto o cardeal austríaco dava a entender: “Das exclusões actualmente em vigor, a única que se irá manter será a que diz respeito à comunhão e eventualmente à distribuição da eucaristia”, afirma. Mas, acrescenta, “muitos dos casamentos, por falta de preparação, de condições ou de intenção são efectivamente nulos”.
Agora, D. Manuel pensa que é necessária “mais seriedade” nas comunidades católicas, na preparação do casamento. E fica na “expectativa” do que o Papa irá dizer no documento que, provavelmente, publicará durante o próximo ano.  

“Não cair na fácil repetição”

No discurso conclusivo da assembleia sinodal, sábado ao fim da tarde, o Papa Bergoglio insistira na ideia de que o Sínodo não se fez para “cair na fácil repetição do que é indiscutível ou já se disse”. Para acrescentar que “os verdadeiros defensores da doutrina não são os que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o homem; não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão”.
Ontem, na homilia da missa, insistiu em que um dos riscos da Igreja é “continuar para diante, sem se deixar perturbar”, diante dos problemas. Outro perigo é ter já uma agenda pré-programada, onde “tudo está previsto: sabemos aonde ir e quanto tempo gastar; todos devem respeitar os nossos ritmos e qualquer inconveniente perturba-nos”.
No discurso conclusivo de sábado ao final da tarde, Francisco apontara os caminhos que julga necessários: “O primeiro dever da Igreja não é aplicar condenações ou anátemas, mas proclamar a misericórdia de Deus, chamar à conversão e conduzir todos os homens à salvação.” A Igreja deve saber “defender e difundir a liberdade dos filhos de Deus”, muitas vezes “coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente incompreensível”.
Mais ainda: o Sínodo significou que se puseram a nu “os corações fechados que, frequentemente, se escondem mesmo por detrás dos ensinamentos da Igreja ou das boas intenções”, julgando, “às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas”. E, acrescentou, o Evangelho não pode ser encerrado como “pedras mortas” para atirar a outros.
De resto, Bergoglio reafirmou, na mesma ocasião, a importância de “afrontar sem medo” os problemas. Mesmo reafirmando a doutrina tradicional da Igreja Católica – o matrimónio é indissolúvel, entre um homem e uma mulher –, o Papa disse que não se deve “esconder a cabeça na areia” perante “todas as dificuldades e dúvidas que desafiam e ameaçam a família”.

Um aviso aos críticos

Destacando o valor da experiência feita enquanto debate livre de ideias, Bergoglio admitiu que “aquilo que parece normal para um bispo de um continente, pode resultar estranho, quase um escândalo, para o bispo doutro continente; aquilo que se considera violação de um direito numa sociedade, pode ser preceito óbvio e intocável noutra; aquilo que para alguns é liberdade de consciência, para outros pode ser só confusão”.
No debate franco no entanto, não vale tudo, avisou o Papa, criticando o anonimato de alguns ataques que lhe têm sido dirigidos.:“No caminho deste Sínodo, as diferentes opiniões que se expressaram livremente – e às vezes, infelizmente, com métodos não inteiramente benévolos – enriqueceram e animaram certamente o diálogo”, disse.
Nesta afirmação, pode ler-se uma chamada de atenção indirecta a uma carta que 13 cardeais – alguns dos quais negaram depois ter assinado a mesma – dirigiram ao Papa, criticando o método do Sínodo.
O patriarca de Lisboa considera igualmente que o facto de este debate ter sido feito em duas etapas – com uma assembleia extraordinária no ano passado e uma regular este ano – foi muito positivo. “Com este Papa, a sinodalidade vai ser uma constante na vida da Igreja” e merecia mesmo um Sínodo dos Bispos para debater o tema. Essa foi a proposta de D. Manuel nos momentos finais da assembleia, quando os bispos foram convidados a deixar sugestões de temas para as próximas reuniões.

(texto publicado no Diário de Notícias de segunda-feira, dia 26 de Outubro)

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