quinta-feira, 2 de julho de 2015

Vozes de mulheres na experiência religiosa

Jornadas em Lisboa incluem apresentação de livro


Santa Ana com a Virgem Maria (pormenor). 
Ateliês das Monjas de Belém da Assunção da Virgem e de São Bruno 

Género e interioridade na vida religiosa: conceitos, contextos e práticas é o tema e título das jornadas de estudo que, esta sexta e sábado, decorrem em Lisboa, organizadas pelo Centro de Estudos de História Religiosa. Sexta-feira, às 18h, na sala Brasil do edifício da Biblioteca João Paulo II, o programa prevê a apresentação do livro Vozes da vida religiosa feminina: experiências, textualidades e silêncios (séculos XV-XXI). Estudos sobre questões tão diversas quanto a relação entre as leituras bíblicas e as ânsias amorosas, os temas do destino e da redenção na época de ouro do fado, os aspectos do discurso religioso de Maria de Lourdes Pintasilgo, a escrita conventual feminina, um sermão feito por uma freira clarissa, o silêncio e o misticismo, as vozes femininas na génese de institutos regulares ou as estratégias discursivas hagiográficas na observância dominicana portuguesa são alguns dos temas da obra.
Coordenado por João Luís Fontes, Maria Filomena Andrade e Tiago Pires Marques, o livro recolhe ainda um estudo de Ivone Freitas Leal sobre as fontes, os itinerários e as problemáticas acerca das mulheres na vida religiosa portuguesa. Um conjunto de estudos que pretende resgatar, na história religiosa, as vozes das mulheres que “têm estado particularmente ausentes tanto por razões historiográficas como por razões propriamente históricas”.
Recordam os coordenadores: “o lugar das mulheres no cristianismo foi, desde o seu início, marcado pela tensão entre a ideia de igual dignidade diante de Deus e uma interdição sacerdotal e apostólica com efeitos nas possibilidades de se fazerem ouvir. (...) é inegável que muitos universos cristãos, e nomeadamente nos que à história do catolicismo se referem, se estruturaram sobre uma distinção rígida entre homens e mulheres, com consequências significativas nas formas de vida religiosa, no seio das ordens e entre os leigos.”
Para lá das questões da santidade e das representações da mulher, tópicos em que se tem centrado a maior parte dos estudos sobre esta questão específica, aprofunda-se aqui a via mística e novas formas de vida comunitária que “permitiram às mulheres aceder à palavra religiosa, ainda que o discurso religioso feminino permanecesse excecional”.

O livro reúne, assim, a maior parte dos estudos que resultaram das jornadas Formas de vida religiosa, identidades e pertenças, organizadas pelo Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade católica Portuguesa (CEHR/UCP), em 2013.



Um dos textos porventura mais inesperados será o de Cátia Tuna, sobre O Fatum feminino: destino e redenção na “época de ouro do fado”, que propõe estudar a voz religiosa feminina no repertório das cantadeiras de fado entre 1930 e 1960, e a forma como ela “exprime uma intencionalidade de natureza religiosa na construção e na forma como faz uso da voz para se sublevar como protagonista no âmbito social e espiritual.”
Essas mulheres fadistas apropriam-se do fado urbano enquanto instância criativa de elaboração de enunciados em que prevalece a mundividência devocional católica, e jogam com os mecanismos de destino e de salvação nela presentes para redefinirem a interpretação dos seus comportamentos e da sua trajetória biográfica”, indo mesmo ao ponto de reelaborar “um julgamento da mulher em que lhe é concedida voz e a possibilidade abonatória de redenção ou, ao invés, a legitimidade para a sua subalternidade em relação ao homem na ideia de um fatum feminino destinado por Deus”.
A fadista surge, assim, como sujeito ou objecto da oração: “Uma particularidade das letras escritas por
 mulheres nesta época é que, sendo estas de 
escassa quantidade, revelam com frequência 
um traço que é a identificação do sujeito, na 
primeira pessoa, como orante, como alguém 
habituado a dirigir‐se a Deus.” E isto é feito, por vezes, colocando em justaposição ou em concorrência, elementos como beijos e orações, amor e pecado, o amado e Deus.
Sobre ânsias amorosas e leituras bíblicas, e a propósito do inédito Livro de Apontamentos, da monja cisterciense Joana de Jesus (1617-1681), escreve Joana Serrado. “Profundamente influenciada por Luís de Granada e por Teresa de Jesus, Joana conquista um pensamento único na elaboração da noção de ânsias. Estas ânsias tornam‐se condição de possibilidade e efeito de um contacto com o Divino e conduzem‐na a uma exegese bíblica pessoal”, diz a autora. Numa das passagens do Livro de Apontamentos, Joana de Jesus escreve: “emtão indo já para a comonidade me deu o Senhor a emtender que o Eterno Padre me aceitava por filha e tendo eu com isto grande temor e umildade, o Senhor me deu a emtender aquelas palavras que dise à Santa Maria Magdalena, dipois de resuscitado: Vou a meu Pai e a voso Pai, a meu Deus e a voso Deus e que se ele era Pai de todos, como reparava eu em que ele me aceitase por filha, com isto fiquei fora de dúvidas e com grande fé, mas com maior umildade e grande comfusão e todo aquele dia senti a presença das três devinas pesoas e quando queria buscar ao filho, achava‐o em o Padre e o Padre achava‐o em o filho e o filho em o ispirito santo e conhecendo que estas devinas pesoas erão distintas, conhecia que todas erão hum só Deos verdadeiro, com quem a minha alma com grande fé e amor se abraçava...”
Comenta a autora: “Quando Joana busca o Pai, encontra o Filho, quando busca o Filho encontra o Pai, e quando busca os dois encontra o Espírito Santo (símbolo também da inspiração e do ar que é vital no vivenciar das ânsias). Joana continua dizendo que o Eterno Pai (e não Cristo) a aceitava como Filha. A Filiatio transforma‐se em filiatio feminina. Ela não é simplesmente “esposa de Cristo” ou uma das criaturas da humanidade salvas pela morte do Filho na Cruz. Joana, como Jesus vai a meu Pai e a vosso Pai, a meu Deus e a vosso Deus (Jo 20:17), numa inclusividade que, embora não exclua a masculinidade, a silencia nesta passagem. Este silêncio do masculino é relativamente excecional na nossa tradição patriarcal. Tal silenciamento permite a Joana identificar‐se com a humanidade de Cristo e, assumindo a sua feminilidade, ser plenamente filha de Deus Pai.”

Pintasilgo, a experiência da fé, o papel das mulheres e Portugal

Um outro estudo a merecer atenção é o de Paula Borges Santos, sobre Aspetos do discurso religioso de Maria de Lourdes Pintasilgo (1968-2004): a experiência da fé e o papel das mulheres no cristianismo. No texto, a autora procura aprofundar a relação entre a identidade religiosa de Maria de Lourdes Pintasilgo com a especialização do seu discurso e a sua intervenção social, incluindo a reflexão sobre o papel das mulheres no cristianismo.
“Particularizando como especialmente importante na corrente feminista sua contemporânea o papel dos grupos de mulheres cristãs, Maria de Lourdes defenderia que os mesmos representavam ‘uma força nova no cristianismo’, situando‐se no fluxo histórico do diálogo de Deus com a humanidade, pela possibilidade que criavam de as mulheres reencontrarem a ‘palavra singular e plural’ e de oferecerem ‘à mensagem de Cristo um meio social em que a sua radicalidade possa tomar forma’”, escreve Paula Borges Santos.
Pintasilgo proporia, além disso, uma espiritualidade das mulheres: “Essa ideia assentava na imagem das mulheres como parte integrante do Povo de Deus, envolvidas na realização de um caminho de pesquisa espiritual. Esse caminho deveria sedimentar‐se no acontecimento e na expressão da ‘cultura feminina’, de forma que o ‘ser‐mulher’ pudesse manifestar‐se em ‘vocação’, isto é, na realização de missões em que ganhariam sentido os dons e as condições de vida de cada mulher.”
Já nos últimos anos da sua vida, a antiga primeira-ministra “abandonaria essa terminologia, preferindo falar de ‘humanidade’ ou simplesmente da ‘pessoa humana’”. Num dos seus últimos textos, sobre “Uma espiritualidade para o século XXI”, escreveu que “a espiritualidade faz sistema com a cultura, o religioso e a ética, e que é exigente de uma representação simbólica que leva até ao limite a capacidade de se produzir essa representação”. E acrescentava que não existia “uma fronteira visível na humanidade, separando a comunidade dos cristãos da comunidade de toda a humanidade”, uma ideia na linha de Yves Congar, o dominicano que ela considerava “um dos maiores teólogos do século XX”.
No texto que serve de pórtico ao conjunto de estudos, sobre As mulheres na vida religiosa portuguesa: fontes, itinerários e problemáticas, Ivone Freitas Leal problematiza o que te se tem passado em Portugal nos estudos sobre esta questão: a invisibilidade das mulheres na vida social, notada por viajantes estrangeiros; a “prevalência da aparência sobre a essência” em situações como adultério, bigamia, barregania, prostituição, mães solteiras ou crianças abandonadas, em que a doutrina da Igreja não tinha correspondência na prática social, muito mais permissiva; e a ambiguidade da atenção que a Igreja prestou à mulher: “Das palavras e dos atos de Jesus Cristo permaneceu a marca indelével de que é filha de Deus, digna de tanta atenção e carinho como os homens. Tão capaz de testemunhar o evangelho como os homens. Esta é a teoria. Na prática há uma condição: contanto que a ordem instaurada não se subverta.” Para concluir, depois de citar muitos outros exemplos contemporâneos, incluindo a questão do acesso das mulheres aos ministérios na Igreja: “Não estão ainda completamente ultrapassadas as milenárias suspeições quanto à malícia e à incapacidade das mulheres.”

As jornadas destes dois dias propõem novas vertentes para o estudo das práticas, discursos ou experiências religiosas. Com contributos do âmbito da história religiosa, antropologia, literatura, sociologia e história da ciência, elas pretendem, dizem os organizadores, “problematizar historicamente as formas de interioridade na sua relação com a diferença sexual e as práticas de género”, cruzando a “dimensão histórica com o problematizar do género como elemento diferenciador”.

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