sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A casa onde agora mora D. António Marcelino

In Memoriam. D. António Marcelino (1930-2013)



É difícil distinguir, num momento destes, entre as memórias pessoais e as profissionais. Na última conversa que tivemos, aproveitámos para pôr a escrita em dia em ambos os âmbitos. Mas o tom principal foi o seu grande entusiasmo com o Papa Francisco: o Concílio Vaticano II está a ser retomado em vários aspectos em que tinha ficado parado ou bloqueado – tal era a sua convicção profunda.
O homem de quem falo, entusiasmado sempre, hiperactivo por feitio, desmesuradamente preocupado com tudo o que o rodeava, é D. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro, depois de ter sido coadjutor (1983-1988) e titular (1988-2006) da diocese. D. António morreu esta quarta-feira no Hospital Infante Dom Pedro, naquela cidade, poucos dias depois de completar 83 anos. O seu funeral será esta sexta-feira na Sé de Aveiro, às 15h.
Há meses, impressionara-me uma alusão, na sua crónica semanal no Correio do Vouga, ao seu retiro na “cela de monge”. Foi apenas, confidenciou-me há um mês, quando falámos, a maneira que encontrou de chamar a atenção para a forma como, na Igreja como na sociedade, muitas vezes se atiram as pessoas para um canto, só porque deixam se servir para determinadas tarefas.
Não era o seu caso, mesmo se ele sentia que podia dar mais, muito mais, ainda. Assim houvesse quem o convidasse, que ele estava disponível para animar debates, fazer celebrações ou presidir até às liturgias dos dias de finados. Mas, por mais que o convidassem, nunca estava satisfeito, porque essa era a sua têmpera.
Tendo apanhado o Concílio enquanto jovem padre, António Marcelino contava, na sua última crónica no Correio do Vouga (que pode ser lida no sítio da diocese de Aveiro na net, de onde também se reproduz a foto), que emoções lhe sobrevieram com o acontecimento e os documentos conciliares: “Senti ao vivo a urgência de uma Igreja outra e do Povo de Deus como o grande obreiro do Reino; descobri o significado do Colégio Apostólico e da hierarquia como serviço; acordei mais para o dever de reconhecer e promover os leigos cristãos na sua dignidade e missão própria, na Igreja e no mundo; tomei consciência de que a santidade é vocação universal e dever de todos; vi com clareza a condição normal da Igreja peregrina,  evangelizadora e missionária por sua natureza e sempre em caminho de conversão:; agradeci a visão nova da liturgia, a descoberta da Palavra de Deus para os cristãos e as comunidades; vivi a novidade das novas relações da Igreja – Mundo; rejubilei com a abertura ecuménica e com a declaração sobre a Liberdade Religiosa; agradeci a Deus os Papas João XXIII pelo seu gesto corajoso, e Paulo VI pela sua lucidez e coragem…”
Não é de estranhar que, nas suas crónicas do Correio do Vouga o Concílio Vaticano II, a urgência de renovação na Igreja e a preocupação com os mais pobres e desprotegidos da sociedade fossem marcas de água constante. Vários textos sobre o Concílio foram, depois, reunidos no livro Vaticano II ao Alcance de Todos (ed. Paulinas).
A sua última crónica, lida por muitas pessoas como um testamento espiritual, é uma afirmação de como ele sempre sentira “a necessidade de ler melhor a realidade e a [sua própria] vida”. Insatisfeito permanente, exigente consigo e com os outros, não queria uma Igreja acomodada em adquiridos de teias de aranha. Por isso rasgou horizontes no âmbito social, desafiando permanentemente a novos campos de acção e à intervenção dos cristãos, como a Cáritas Portuguesa recordou em comunicado.
Também na comunicação social D. António deixou marcas: a ele se deve a existência do programa Setenta Vezes Sete, actualmente o mais antigo da televisão pública. O então bispo “das comunicações sociais”, como era conhecido, considerava que a Igreja deveria estar presente na praça pública.
Por ironia, foram os media, e a televisão, a provocar-lhe uma grande mágoa, no início dos anos 1990: D. António aceitou participar num debate-entrevista, para o qual foram convidadas apenas mulheres. O tom das perguntas nem sempre foi o acertado e as respostas também nem sempre saíram na melhor forma. A sua acção como bispo ligado a esse campo ressentiu-se nos tempos imediatos. Mas nem por isso D. António deixou de vincar as suas opiniões, mesmo quando se pôs a hipótese de a Igreja ser proprietária de um canal de televisão e ele foi um dos principais opositores à ideia. Acabou por perder mas, mais uma vez, não se deixou abater e seguiu para outros caminhos e outros entusiasmos.
Nesses debates mais difíceis, a sua personalidade forte nem sempre deixava lugar ao trato fácil. Seja-me permitido evocar a memória pessoal (e a de outros amigos), para dizer que também tivemos alguns despiques e pequenos (ou grandes) desaguizados. Mas todos sabíamos que podíamos afirmar perante D. António Marcelino a nossa opinião, mesmo que ela fosse a oposta da dele. No final, não haveria rancor. É isso mesmo que ele conclui na crónica já referida: “Vivo reconciliado com a vida e comigo próprio. Sem inimigos. E amigos? Agora, talvez mais amigos do personagem bispo que fui, do que da pessoa do bispo que sou. De ontem ou de hoje os verdadeiros amigos não fazem distinções. São amigos.”
Na última conversa que tive com ele, dia 13 de Setembro, mostrava-se entusiasmadíssimo com os sinais que o Papa Francisco tem dado. No seu escritório, no seminário de Aveiro, tocavam cantos de Taizé e, depois, uma belíssima peça barroca que não identifiquei – e que não perguntei o que era. Em volta, livros, livros e livros, nas prateleiras, nas cadeiras, alguns no chão, sinal de quem procura estar actualizado ao momento. Lá fora, pela janela, via-se a cidade, presença do universo que sempre desafiou D. António.
E sobre o Papa, dizia que se trata de encarreirar de novo o Concílio, de reformar a Cúria Romana de modo a que ela seja sinal de evangelho e não o seu contrário, de dar maior protagonismo aos leigos (outras das suas insistências), de trazer os mais desfavorecidos para o centro da acção da Igreja. D. António intuía que o caminho do Papa não seria fácil, porque já havia pessoas e grupos a reagir a posições e atitudes do Papa mas também estava esperançado nas capacidades e na estratégia do Papa: “Ele sabe dizer as coisas sem ferir ninguém e é inteligente a lidar com as estruturas”, dizia-me.
De resto, estava presente sempre o seu humor, a sua esperança, a sua boa disposição, o seu interesse por tudo e por todos. Na crónica já citada, para falar da sua dedicação a Aveiro, ele, que viera de Portalegre, escrevia: “Mia Couto põe na boca de um ancião africano esta palavra clarividente: ‘O importante não é casa onde moramos, mas onde em nós a casa mora”. A minha casa mora no meu coração. Aí a guardo, desde o dia 1 de Fevereiro de 1981, um amor incondicional e irreversível. Este amor chama-se Diocese de Aveiro. “
A sua casa, D. António, mora agora em muitas e muitos que o não esquecem.

(Outras notas biográficas mais completas podem ser lidas aqui e também aqui
Dois outros textos de D. António Marcelino podem ser lidos aquisobre o papel dos leigos na Igreja, e aqui, sobre o testemunho da fé no mundo contemporâneo.)

1 comentário:

Paulo Melo disse...

Sabia que não deixarias de assinalar a dívida da Igreja a D. António Marcelino. Sem ter tido com ele uma relação tão próxima como tu, partilho a tua consideração por um homem aberto às inquietações dos seus contemporâneos e que me ajudou a entender a missão do bispo na Igreja