domingo, 7 de abril de 2013

A ressurreição continua


A crónica de frei Bento Domingues, neste Domingo no Público, aborda o significado do gesto do Papa Francisco no lava-pés de Quinta-Feira Santa, bem como da sua intervenção, poucos dias depois, sobre o papel das mulheres. 

1. Desde a sua eleição, a 13 de Março 2013, o Papa Francisco alterou as expectativas sobre a renovação da Igreja. Do Vaticano, nos últimos anos,  só chegavam más notícias. Bento XVI, em vez de varrer a Cúria, trabalhava na sua obra teológica, depois de  ter silenciado a dos outros.
Se não for travado e não for uma táctica, o caminho do Papa Francisco pode trazer boas surpresas. A começar pelo próprio nome. Não passa  pela cabeça a ninguém que a figura de S. Francisco de Assis possa abençoar aquela Cúria,  as suas intrigas palacianas  e as supostas lavagens de dinheiro. O nome de um poeta anarquista e maltrapilho para nome de Papa romano roça o surrealismo. 
Não foi apenas a displicência em relação a vestes, sapatos e cerimoniais consagrados que  ressuscitou a intuição de João XXIII e João Paulo I. Foram iniciativas concretas, a partir da periferia, que indicaram que não se estava apenas  a procurar uma Igreja pobre para os pobres, mas que a igreja não existe para si mesma. O seu lugar é fora de portas.
A 5ª Feira Santa, consagrada a exaltar a instituição da Eucaristia e a ordenação sacerdotal, excluía a presença de mulheres. O próprio lava-pés, reproduzindo, de forma fundamentalista, a referência aos 12 apóstolos, canonizava uma interpretação clerical e não  exprimia a radicalidade do gesto de Jesus. A transferência desta celebração da Basílica para o centro de correcção juvenil Casal del Marmo, a norte de Roma, onde se encontram detidos 46 jovens, estrangeiros, muçulmanos e ateus, é verdadeiramente pascal: no simbólico número doze há duas mulheres entre os apóstolos. É a destruição de um mito.
2. Goste-se ou não, as celebrações da Páscoa obrigam os cristãos a confrontarem-se com um fenómeno insólito, que sempre procuraram disfarçar. As narrativas da Ressurreição foram todas escritas por homens, atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João. Era de supor que o maior destaque fosse dado aos apóstolos, mas não é. São as mulheres que recebem o encargo de os evangelizar, de lhes anunciar o que há de mais importante no Evangelho, a ressurreição.
Este é o facto. Não basta dizer que Cristo assim quis e pronto. Seria o elogio da arbitrariedade. Ele devia ter as suas razões para agir deste modo. Quais poderiam ser? 
Foi Jesus que escolheu e chamou os seus discípulos. Acabou por descobrir que eles não O entendiam, nem estavam interessados no seu projecto. No Evangelho de S. Marcos, a grande discussão que os animava, no âmbito da tomada do poder, centrava-se na distribuição de lugares. (Mc 4, 34 par.). Dois deles encheram-se de coragem e colocaram ao Mestre as suas exigências: quando triunfares, como rei messiânico, nós queremos os dois primeiros lugares. Esta pressa produziu uma grande indignação nos outros. Depois de uma reunião, receberam todos a mesma resposta: aquele que quiser ser o primeiro, de entre vós, seja o servo de todos (Mc 10, 35-45). 
Alimentaram sempre a esperança de que Jesus acabaria por perceber que esse rumo só o podia levar ao desastre. Pedro tentou, até à última, mostrar-lhe que tinha mesmo de mudar.
Os apóstolos, quando viram o Mestre derrotado na cruz, aperceberam-se de que tinham andado enganados. Acabara-se o tempo das ilusões e cada um voltou à sua vida. Já tinham perdido muito tempo.
3. Segundo os quatro Evangelhos, as mulheres nunca foram chamadas para o discipulado. Seguiram Jesus, por sua própria iniciativa, descobrindo que por ali corria a vida verdadeira e liberta. Nunca pediram nada em troca do muito que fizeram a Jesus e ao seu movimento. Andavam e serviam por puro amor (Lc 7-8).
A mulher, por ser mulher, na sociedade em que Jesus nasceu e foi educado, não contava - “não contando mulheres e crianças” - e, no casamento, estava dependente da vontade do marido. O estatuto da mulher dependia do homem (Mt 19).
Seria anacrónico dizer que Jesus era um feminista e inscrevê-lO num movimento nascido nos finais do século XIX. A questão não é essa. Apesar da missão que lhes foi confiada nas narrativas da ressurreição, teima-se em negar às mulheres, por serem mulheres, qualquer papel na Igreja, privilegiando sempre os homens. Não é muito difícil perceber porquê.
Aquilo que Jesus exigia aos discípulos, a disponibilidade para o serviço, não o conseguiu, como vimos. Com aquelas mulheres Jesus nunca teve esse problema. As que O seguiram nunca Lhe faltaram. Nunca pediram nem esperaram nada em troca. Não foram, apenas, testemunhas do seu percurso até Calvário. Não O largaram mesmo no sepulcro, quando tudo parecia perdido. Deixaram-se seduzir e isso lhes bastou. Jesus e o seu projecto passaram a fazer parte das suas vidas, para sempre.
É fácil de perceber que era com mulheres desta têmpera que o Ressuscitado poderia contar para converter os discípulos ao caminho do serviço gratuito. Mesmo depois da ressurreição, o que continuava a interessar os Apóstolos era o poder. Foram directos ao assunto. Jesus não se deixou impressionar, colocou este caso nas mãos do Pai e do Espírito Santo e uma nuvem o ocultou (Act 1, 6).

(ilustração reproduzida daquionde se pode ler um texto interessante sobre a eventual recuperação da visitatio sepulchri, uma prática medieval entretanto abandonada, que consistia em reproduzir os actos e as palavras das “santas mulheres” que foram ao túmulo e que foram as primeiras testemunhas da ressurreição de Cristo)

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