domingo, 23 de dezembro de 2012

A vaca e o burro e o Jesus "simbólico" do Papa


Livro - Teologia

Comecemos pela vaca e pelo burro: não, o Papa não disse que eles têm que desaparecer do presépio. O que se passou quando “Jesus de Nazaré – A Infância de Jesus” foi publicado, a 20 de Novembro, traduz um grave problema mediático: agências noticiosas e jornais internacionais passaram a informação, depois repetida e em alguns casos acrescentada, de que o Papa afirmava que o burro e a vaca não fazem parte do presépio; alguns chegavam ao ponto de escrever que o Papa afirmava que aquelas figuras são invenção.
E no Telejornal da RTP, desta noite, passou mais uma peça da qual se depreende que a jornalista nem sequer teve o trabalho de ler os 3-parágrafos-3 em que o Papa fala do assunto. E só uma leitura apressada ou sensacionalista terá retido as pessoas apenas na primeira frase desses três parágrafos (25 linhas!) onde o tema é tratado: “Aqui, no evangelho, não se fala de animais”, escreve Bento XVI. Para acrescentar logo a seguir: “mas a meditação guiada pela fé (...) não tardou a preencher esta lacuna.” (pág. 61-62) E para terminar peremptoriamente: “Nenhuma representação do presépio prescindirá do boi e do jumento.”
O Papa atém-se, para chegar a esta conclusão, ao significado simbólico e bíblico da representação destas duas figuras na cena do nascimento de Jesus. Tal como sucede quando fala dos magos, que deu origem a outra “descoberta” mirabolante de jornais espanhóis: Bento XVI “afirmava” que os magos foram da Andaluzia, por causa desta frase: “Se a promessa contida nestes textos estende a proveniência destes homens até ao Extremo Ocidente (Társis = Tartessos, na Espanha), a tradição encarregou-se de desenvolver ainda mais a universalidade dos reinos destes soberanos, interpretando-os como reis dos três continentes então conhecidos: África, Ásia, Europa.”
Um disparate mediático, portanto, a juntar a tantos outros que, no domínio da informação religiosa, tantas vezes se verificam (sendo certo que, neste caso, muito do que se publicou tinha por fonte primeira um erro das agências e imprensa internacional e, por isso, a culpa principal não foi dos media nacionais; mas nada disso retira responsabilidade a que se confirme a informação).
Arrumadas no seu sítio as duas simpáticas figuras do presépio e aquilo que o Papa (não) diz, podemos então olhar para este novo livro de Joseph Ratzinger/Bento XVI, que completa a trilogia “Jesus de Nazaré”. E perguntamos: fosse este livro da autoria de outra pessoa que não o Papa e teria ele o sucesso mediático que teve, tal como já aconteceu com os dois anteriores volumes? Seguramente que não. Até porque nem o teólogo Joseph Ratzinger era um nome popular antes de ser Papa, nem os seus livros são fáceis de entender pela maioria dos crentes.
Este terceiro tomo (na realidade, o prólogo à obra) de “Jesus de Nazaré” volta a ser uma obra que acentua a dimensão simbólica da leitura do texto bíblico. Ratzinger faz tábua rasa de toda a exegese histórica dos evangelhos; para ele, tudo o que contam Lucas e Mateus sobre a infância de Jesus é verdade, mesmo se as duas narrativas são diferentes e não coincidentes em muita coisa. O Papa chega a escrever que ambos os autores dos evangelhos queriam escrever “história real”. Belém, os magos, a estrela, as aparições do anjo, os sonhos de José, a matança dos inocentes, as duas genealogias de Jesus – tudo isso “confirma” as profecias do Antigo Testamento e é narrativa histórica, na leitura de Ratzinger.
Na sua preocupação de “justificar” os textos dos evangelhos, o Papa chega a dizer, referindo-se a Augusto, que “sem o saber, o imperador contribui para o cumprimento da promessa” do nascimento de Jesus (p. 58). Se a afirmação se entende enquanto simbólica, ela pode parecer que está a falar-se de um Deus que dispõe das pessoas como se se tratassem de marionetas. E, noutro passo, diz que uma profecia do ano 733 a.C., segundo a qual uma virgem daria à luz um Emanuel se cumpriu “no momento da concepção de Jesus Cristo” (p. 47).
Ora, para lá de saber que pormenores dos evangelhos têm ou não fundamento histórico (questão importante, embora não decisiva para a compreensão do texto bíblico), há uma outra questão de fundo: toda a Bíblia é uma releitura permanente da relação de Deus com o seu povo. O Novo Testamento cristão é, também ele, uma releitura do Antigo Testamento judaico a partir da centralidade que Jesus passa a ter para os cristãos. Não por acaso, o livro começa por dizer que os evangelhos foram escritos para responder a essas “duas perguntas inseparavelmente unidas” sobre “quem é Jesus e donde vem”.
O valor principal do livro é, assim, a sua leitura simbólica – e ele inclui passagens notavelmente bem escritas, timbre deste Papa, como são por exemplo as passagens que se referem a José como o “justo” (p. 38/39), as referências à alegria como “dom próprio do Espírito Santo” (p. 29) ou a ideia segundo a qual “ao criar a liberdade, de certo modo Deus tornou-se dependente do homem; o seu poder está ligado ao ‘sim’ não forçado duma pessoa humana” (p. 36).
Mas este prólogo de “Jesus de Nazaré” decepciona ao não propor um retrato de Jesus e dos evangelhos da infância que seja significativo para os tempos de hoje e que se limita, por vezes, a repetir o que se diz desde há séculos.
O livro de Ratzinger foi objecto da entrevista que o padre e biblista Joaquim Carreira das Neves deu neste sábado à TSF. Nela, o exegeta defende que a obra faz uma “história teológica”, que pretende “preencher o vazio da infância de Jesus”. E recorda que os relatos da infância nasceram porque os cristãos dos finais do primeiro século (quando foram escritos os textos de Mateus e Lucas) se perguntavam sobre as origens de Jesus – sendo, por isso, respostas teológicas a essa pergunta. 

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