domingo, 13 de junho de 2010

Calderón de la Barca numa missa do século XXI

(Foto: José Nogueira Ramos no papel de Moisés/© Teatro do Ourives)

Já aqui se falou antes da peça Os Mistérios da Missa, encenada por Júlio Martin e representada pelo Teatro do Ourives. Este auto sacramental de Calderón de la Barca estará em cena em Lisboa, no Convento dos Cardaes (R. do Século, 123), nos próximos dias 16, 17 e 18 de Junho. A entrada é livre e o espaço é convidativo.

No Ípsilon de dia 11, publiquei um texto sobre a peça, que aqui se reproduz como forma de convite a ir ver o espectáculo.

O novo Teatro do Ourives apresenta um texto do dramaturgo espanhol que era encenado nas ruas como uma grande festa social e como exaltação barroca e teatral da fé católica.

Pegue-se num auto sacramental de Calderón de la Barca, num grupo de teatro que nasce ao mesmo tempo que ensaia e numa encenação que procura reconstituir a festa social que, por esta altura do ano, o teatro barroco propunha na Espanha católica do século XVII.

É de tudo isto que nasce a peça Os Mistérios da Missa, interpretada pelo Teatro do Ourives – e já lá vamos ao nome. O texto é um entre as dezenas de autos sacramentais escritos por Pedro Calderón de la Barca para serem representados nas ruas. Na altura do Corpo de Deus, festa católica que o Concílio de Trento promovera com mais intensidade para exaltar a fé católica, Calderón apresentava estes textos, que o site da Biblioteca Miguel de Cervantes define como “de raiz mais ética que cristã”.

Calhando normalmente nesta altura do ano (Maio, Junho – celebrou-se este ano no passado dia 3), a festa pretendia também afirmar a diferença em relação aos Judeus e também para com os protestantes: a Reforma do século XVI colocara em causa o carácter sacralizado da missa católica (que Calderón faz questão de acentuar neste texto). As pessoas vinham para a rua, em massa, assistir à procissão do Corpus Christi, que culminava com a encenação de um dos mistérios – no caso de Madrid, onde Calderón viveu a maior parte da sua vida, era feita na Plaza Mayor.

Estas encenações eram “um espectáculo operático”, explica ao ÍPSILON Júlio Martin, 48 anos, encenador do Teatro do Ourives (e do TUT-Teatro da Universidade Técnica desde 2009, onde substituiu Jorge Listopad). Os autos eram sempre à volta do sacramento da missa, mas tinham “uma infinidade de argumentos”. Nas ruas, quatro carros andavam pelas cidades, convergindo depois para uma praça e ligando-se ao cenário já preparado no local.

Calderón de la Barca não é um estranho para Martin que, enquanto actor do TUT, protagonizou a figura de Segismundo de A Vida é Sonho, na Torre de Belém. O dramaturgo espanhol, recorda Martin, trabalhou com engenheiros italianos na criação de um “espectáculo total” – o dramaturgo levará o teatro barroco espanhol ao seu cume. Os anjos voavam, os demónios saíam de alçapões em fogo, havia trombones e música, danças… “O que ele pretendia com os autos era envolver os mistérios num ambiente de festa e que a alegria desse cobertura ao mistério e para que este não aparecesse deslocado.”

A presente encenação dos Mistérios optou, no entanto, por levá-la para dentro de igrejas e capelas – do castelo de Sesimbra e do seminário de Almada e, na próxima semana (16 a 18), no Convento dos Cardaes, em Lisboa (R. do Século, 21h30, com entrada livre). Esta não é uma escolha casual, pelo lugar mítico para a relação entre as artes e o religioso que os Cardaes representam: ali foi encenada A Troca, de Paul Claudel, já há mais de vinte anos, pelo Teatro do Mundo, após o que o espaço tem acolhido intervenções artísticas muito diversas.

“Este texto tem um lado mais intimista, optámos por fazê-lo dentro de uma igreja.” A proximidade e a festa são dadas pela deambulação dos actores entre os espectadores e pela proximidade dos músicos – que tocam ao vivo – num espaço, o de uma igreja, que remete também para uma experiência comunitária.

O texto encenado por Júlio Martin (que tem feito carreira de actor, sobretudo no Teatro Nacional D. Maria II, mas também no TUT e no Teatro Maizum) é uma adaptação em prosa (o original é em verso), do actor alemão Harry Hardt, traduzida para português por Costa Ferreira. Nesta encenação, foram introduzidas ligeiras alterações: a figura do Judeu é substituída pelo Farisaísmo e o Romano dá lugar ao Paganismo. Opções que pretenderam retirar alguma virulência da linguagem da época, “muito datada e que surgiria como ruído” – o mesmo sucedeu com referências litúrgicas entretanto em desuso.

Por isso estamos perante uma versão que humaniza o ritual litúrgico e remete para a dimensão teatral da liturgia católica – como quando o Farisaísmo rememora a paixão de Cristo e a relaciona com os paramentos, ou quando entra Adão à procura do paraíso perdido. Nesse sentido, é um texto pleno de contemporaneidade – ou, melhor ainda, de intemporalidade, já que é essa justamente “a marca da criação artística e de uma obra de arte”.

O Teatro do Ourives, enfim: inicialmente constituído por profissionais e amadores apenas para este espectáculo, o grupo evoluiu e, enquanto ensaiava, ficou a ideia de prosseguir. Como nascera à sombra da Vale d’Ácor, instituição católica de recuperação de toxicodependentes, o nome foi Júlio Martin buscá-lo à peça A Loja do Ourives, de Karol Wojtyla – o Papa João Paulo II. “Era apaixonado pelo teatro e foi actor.” Mas remete também para as “pedras preciosas que são as pessoas e as situações”. Ficou a vontade de continuar, com outros projectos, mas sem qualquer carácter de um grupo confessional. “Somos um grupo de teatro.”

No início do auto, diz a Sabedoria à Ignorância: “Em breve tu própria saberás, compreenderás, verás claramente a essência do grande mistério deste mundo.”

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