segunda-feira, 9 de junho de 2003

Pentecostes
João César das Neves

A Igreja Católica é uma instituição aberrante, corpo estranho e insólito na sociedade. Por exemplo, quem entende que se seja feliz trabalhando mais que todos sem ordenado ou relações sexuais, sujeito a autoridade alheia ou até vivendo livre atrás de grades? Não admiraria, pois, se um dia destes se declarassem inconstitucionais os votos de pobreza, castidade e obediência e a clausura das ordens religiosas; ou se uma directiva comunitária proibisse jejuns, vigílias e promessas em Fátima em nome da saúde pública. A Europa vê os templos, mas ignora as bem-aventuranças. A Igreja é familiar e desconhecida.
Entretanto reina o paganismo. Ligar a televisão ou seguir as conversas de café é mergulhar na idolatria. A sociedade burguesa gosta de se apresentar como humanista, livre, moderna, mas estes conceitos são inertes e inconsequentes. Na realidade, as pessoas entregam a vida aos velhos deuses da mitologia, prestando culto atento e venerador ao dinheiro (Mercúrio), ao prazer (Vénus), à farra (Baco), ao prestígio (Júpiter), à natureza (Ceres). Não é uma reprodução exacta dos mitos antigos, mas uma superstição pós-cristã, a quem a Igreja libertou dos medos dos espíritos malignos e ensinou a tolerar (não chega a amar) o próximo. Mas é sem dúvida politeísmo.
O paradoxo é que toda a cultura e raiz do Ocidente é cristã. Os positivistas dos últimos séculos limitaram-se a encadernar os princípios cristãos numa capa laica. Por exemplo, o projecto de Constituição Europeia, que se esqueceu de mencionar a herança cristã, só é compreensível dentro da cultura religiosa. Não é possível ler um artigo da lei, ou sequer entender qualquer elemento da nossa vida, incluindo o ateísmo, sem a referência à Igreja. O nosso tempo fala cristão sem saber o que diz.
Mas isso não impede que os critérios de Jesus sejam hoje mais alheios à vida comum que os nomes dos dinossáurios. Que devemos fazer acerca disto? Atacar e denunciar furiosamente a situação? Lamentar e chorar o seu destino? O pior do paganismo seria levar os cristãos a estas atitudes pagãs. Porque no fundo o fosso entre mundo e Igreja é natural. Foi sempre assim. A culpa é do ser humano, que só pode ser salvo da forma aberrante e insólita que Cristo usou. Só pobreza, castidade e obediência, na vida dos leigos ou plena nos votos, salva a sociedade dos deuses do luxo, fastio, miséria. «Não há debaixo do céu qualquer outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos» (Act 4, 12).
A Europa deve tudo à Igreja e despreza-a. A Igreja derrotada canta vitória, porque Cristo venceu: «No mundo tereis aflições. Mas tende coragem! Eu venci o mundo!» (Jo 16, 33). O mundo longe da Igreja manifesta essa vitória. Todos os avanços e progressos de políticos, empresários, cientistas e filósofos levam ao desespero. A sociedade mais avançada conduz à perdição. A televisão e os cafés mostram o paganismo e o ódio dos pagãos ao paganismo. Nunca foi tão claro que «não há qualquer outro nome...».
Depois da Ressurreição de Cristo, os cristãos estão salvos. Não vão ser salvos. Estão já salvos. A sua alegria e felicidade, a sua vida livre e redimida é a salvação desta Europa, como foi de Roma. «Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos. Seja a vossa bondade conhecida de todos. O Senhor está perto» (Fl 4, 4-5).
Estamos no tempo depois do Pentecostes.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
(in Diário de Notícias, 9.6.2003)
Comentário: reflexão interessante; partilho bastante do diagnóstico; sou reticente ou mesmo discordante do que há de terapêutica sugerida no texto.

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