segunda-feira, 2 de dezembro de 2002

Catalina e Mestre Américo
Manuel Pinto
Catalina Pestana. Já a conhecia. Mulher forte e frontal. De uma clarividência e assertividade tocantes. Toma hoje posse como nova Provedora da Casa Pia de Lisboa, sendo a primeira mulher a ocupar o cargo. O facto já diz, por si mesmo, muita coisa.
Gostei de a rever no fim de semana nos canais de televisão. Sorriso aberto num rosto expressivo, olhar de esperança, a frontalidade de sempre. O cargo e a boca do palco mediático não a tolhem nem no elogio e nem na denúncia.
O elogio foi para a comunicação social que, desassombradamente, investigou o que a justiça arquivou e que nos tem confrontado com um problema que não é apenas da Casa Pia, mas de todos nós, enquanto sociedade política (como bem notou o sociólogo Paquete de Oliveira, no “Jornal de Notícias” de sábado).
A denúncia foi para a mesma comunicação social, em particular para aquela que, emproada e justiceira, perdeu a noção da dignidade e da elevação, e se estatelou na mesma lama que denunciava. Catalina Pestana disse-o na própria TV, em nome das centenas de crianças da Casa Pia e de muitos milhares de outras que, por todo o país, abrem os olhos e a boca de espanto e perplexidade.
A outra figura desta crónica é mestre Américo, alguém de quem nunca tinha ouvido falar antes, mas que agora fiquei a admirar. Foi ele um dos poucos que, ao longo de todos estes longos anos, não pactuou com o silêncio, não claudicou diante da ignomínia e que deu a cara em nome da dignidade e dos direitos das crianças. Se os elementos que têm vindo a público se confirmam, a sociedade portuguesa deve-lhe estar profundamente grata. O testemunho e a coragem desse homem merecem ser enaltecidos e publicamente reconhecidos. Ele, de alguma forma, nos redime a todos, na medida em que sinaliza, de modo eloquente, que por mais poderosos que sejam os constrangimentos e as lógicas da intimidação e do medo, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”.
Uma flor nasce no esterco. Um rebento no tronco ressequido. Com a flor e o rebento nos agarramos à vida. Para a fazer nova e lavada.
(Crónica na Rádio Universitária do Minho e publicada hoje no Diário do Minho)

Sem comentários: